O Tempo das Coisas

Por Anderson Rosa

O Tai Chi Chuan é uma prática corporal, que se estende não somente pelo corpo, mas também pela mente e pelo espírito. As pessoas começam sua prática por diversas razões, que nem sempre são as mesmas. Alguns apenas para se movimentar, outros para um exercício leve (doce ilusão…), outros pelo alongamento, outros por ser considerado um exercício exótico, outros por desenvolvimento pessoal, outros para acalmar a mente, e outros motivos mais que podem ser elencados numa longa lista.

A primeira coisa que se percebe da primeira vez que você começa a praticar o Tai Chi Chuan, é que você não tem a menor noção de como seu corpo funciona e que ele insiste em lhe desobedecer. No meu caso, eu tive a nítida sensação de que meu corpo havia brigado com o resto do meu ser e simplesmente fazia o que ele bem entendia. Devo dizer que na minha cabeça, o movimento estava perfeito. Movimentos arredondados, suavidade, transições perfeitas. Olhando no espelho… parecia um boneco de posto no olho do furacão. Nas primeiras aulas, a frustração era enorme. Mesmo depois que consegui reproduzir de forma babuínica os 18 movimentos do estilo Chen ainda assim a imagem do boneco de posto me assombrava (assombra?).

E da mesma forma que a maioria das pessoas, depois de aprender os 18 movimentos, queria aprender mais: Lao Jia Yi Lu (a forma longa do estilo Chen), espada, sabre e mais o que viesse pela frente. Mas o problema todo é que o boneco de posto estava lá, sobrevivendo às minhas custas. Rezei, meditei, fiz alongamento, aumentei a intensidade, e…

Nada.

Absolutamente nada. Pelo menos da forma que eu entendia como nada. Nenhuma mudança radical, nada maravilhoso, nenhum super alongamento. Eu queria todos os benefícios prometidos na divulgação sobre as maravilhas do Tai Chi Chuan, mas que para mim eram tão distantes como ir à Lua. E queria rápido, muito rápido.

Mas daí, uma coisa interessante aconteceu.

Teve um dia no qual eu estava muito cansado e com o corpo dolorido por práticas do dia anterior, então resolvi pegar um pouco mais “leve” e não fui até o meu limite. Na verdade, meu professor já havia me orientado a esse respeito, mas como muitos, ignorei sua sabedoria, substituindo-a pela minha teimosia. Alguns podem dizer que o que veio depois disso é uma obviedade, mas não é bem assim. Curiosamente, eu me senti melhor com essa prática um pouco mais leve, e no dia seguinte, consegui ir um pouco mais adiante no esforço. E depois de alguns dias, consegui ir mais adiante ainda. E com isso, semana após semana, os resultados começaram a aparecer. O que houve de diferente que não vinha acontecendo até então?

Depois de atingido o objetivo, é mais fácil explicar. O processo é relativamente simples, basta entender o próprio conceito por trás do Tai Chi Chuan. Quando dizemos “leve” não estamos nos referindo a frouxidão. Fazer de forma frouxa, é perder a conexão que existe entre o superior e inferior, o lado esquerdo e o lado direito.

Por exemplo: fazer um exercício de forma mais leve, não quer dizer sem esforço. Simplesmente quer dizer “não forçar até o limite máximo”. Para explicar de forma didática, convém utilizar a imagem da suspensão de um carro. Digamos que a carga máxima que o porta-malas de determinado veículo pode carregar é de 250 quilos. Este valor se refere à carga “máxima” e não a carga diária que o veículo transportará. Se você utiliza o veículo com um mínimo de carga, a suspensão irá durar bastante tempo. Se você diariamente carregar a carga máxima, em pouquíssimo tempo a suspensão irá se danificar. E o mesmo raciocínio serve para o corpo. Se você sobrecarrega o corpo constantemente, ele em breve ficará doente. Mas se ao invés disso, você utilizar o bom-senso e a leveza, seu corpo será capaz de ir muito mais longe.

Diante dessa percepção em especial fui capaz de deduzir que ao mesmo tempo em que aumenta a intensidade dos exercícios, deve-se deixar uma margem de segurança, ou uma margem de crescimento. O que isso quer dizer? Se você constantemente está no limite, então não haverá espaço para o crescimento e o desenvolvimento. É importante entender que não se deve forçar os limites, mas sim ampliar os limites. Se você deixa um espaço para o crescimento, naturalmente os limites se expandem. Dito de uma forma budista: se esticar demais a corda, ela arrebenta, se deixar frouxa demais, ela não toca. É preciso afinar o instrumento, que é o nosso corpo.

No Tao Te Ching, no cap. 11 diz:

“Trinta raios convergem ao vazio do centro da roda:

Através dessa não-existência

Existe a utilidade do veículo” (…)1

Segundo Mestre Wu “É preciso existir um espaço no interior e no exterior da manifestação para que ela possa se expressar e interagir com o mundo. (…)A primeira estrofe do poema remete às carroças que existiam na China, há três mil anos. Suas rodas eram construídas com madeira e cordas, onde um círculo pequeno é circundado por um círculo maior e os dois se unem através de raios de madeira que convergem para o centro, dispostos de forma equidistante, e presos com cordas aos dois círculos. Entre os dois, e em volta de cada raio existe um espaço vazio que torna leve o peso da roda; circundando a roda existe um espaço vazio, a própria estrada, pelo qual avança, enquanto se movimenta; e no centro da roda, no interior do círculo menor, existe um espaço vazio por onde passa o eixo que liga a roda ao corpo da carroça e onde a roda se apoia, para girar. Esta é a utilidade destes vazios, ou não-existências, referidos ao valor ou à existência da roda: permitir o movimento da carroça. Se não existisse o vazio no centro da roda, ela não poderia unir-se à carroça, então seria um objeto sem utilidade2; (…) se não existisse um espaço vazio em torno da roda, a carroça não teria utilidade porque não poderia movimentar-se pelo mundo”3.

Durante a prática, durante a alternância constante entre cheio e vazio, superior e inferior por exemplo, existe um breve momento em que o Tao se manifesta no praticante. Manifestar ou cultivar o Qi (energia) no corpo, é algo que só irá acontecer se houver um espaço (o vazio) ali (no corpo). Ou seja: se você faz sua prática sempre no limite da sua capacidade, não apenas você limita o seu aprendizado, como evita que o o Qi se manifeste no corpo. Como ele irá se manifestar se não houver um espaço onde isso possa ser feito?

Enquanto não soubermos alternar o cheio e o vazio, praticar com leveza, nosso corpo irá se ressentir com dores inesperadas, falta de avanço na qualidade da prática, e incapacidade de cultivar a energia de modo correto. Sozinhos, é muito difícil ter esta percepção. Por isso é um aprendizado. Para evitar a confusão, o melhor é sempre contar com um professor bem preparado, que com certeza irá orientar a melhor forma de resolver essas e outras situações que possam surgir durante seu aprendizado da forma.

Ser bem orientado é um dos passos mais importantes para o aprendizado. Além disso, saber respeitar as orientações do seu professor e tentar perceber o próprio corpo durante o movimento, trará resultados práticos mais confiáveis e seguros.

Dito isso, creio que só resta me despedir, e esperar que todos encontrem alguma utilidade para essas percepções que trouxe do meu aprendizado pessoal.

Notas:

1 Cherng, Wu Jyh, TAO TE CHING, Ed. Mauad X, 2011, Rio de Janeiro, pág. 75.

2 Grifo do autor da matéria. (N.E.)

3 Idem, pp.: 75-77.